segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

#24


meses a fio em silêncio fechado num sítio curto, cabelos, a pele defeituosa, o corpo inteiro desconhecido ao espelho: amigo doente, entravado, a agarrar-nos a mão
(o cansaço - custa-me tanto mas o cansaço de olhá-lo 
ser réptil calhava bem, ser bisturi - 

Na verdade, olho para as linhas que escrevi e apetece-me dizer 
desisto
ou outra coisa como
que se foda 
mas nunca diria
que se foda
que se foda é má criação ou que se foda a má criação, vai dar ao mesmo, e o problema persiste, i.e.,olhar as linhas escritas e ter vontade de dizer
desisto
ou outra coisa como
que se foda 
mas nunca dizer
que se foda
porque que se foda é má criação ou que se foda a má criação, vai dar ao mesmo, e o problema persiste, é claro que o problema persiste e optar por 


meses a fio em silêncio fechado num sítio curto, cabelos, a pele defeituosa, o corpo inteiro desconhecido ao espelho: amigo doente, entravado, a agarrar-nos a mão
(o cansaço - custa-me tanto mas o cansaço de olhá-lo) 
ser réptil calhava bem, ser bisturi - 

é a escolha típica de alguém da minha idade, nascida quando eu nasci, talvez no mesmo país ou, pelo menos, com as mesmas directrizes ou, pior ainda, não é mais do que uma espécie de tique semi-universitário, semi-século-etcetcetc, e pensar nisso é esse tique e negar esse tique é esse tique e dissecar analiticamente e utilizar expressões como 
dissecar analiticamente
é esse tique, é algo típico de uma pessoa da minha idade que quer escrever ou que quer fingir que escreve sem interesses que não o acto em si, a beleza do acto em si, o acto pelo acto sobre o acto e nunca contra ao acto, é algo típico de quem não tem ou não sabe o que dizer ou aquilo que diz é apenas aquilo que diz e não uma porta ou uma avenida em direcção a uma conclusão inesperada, a um modo encantador de encarar e pensar o mundo e o homem e deus e a morte e a velhice e os hábitos e a história e a antropologia, sociologia, biologia, física quântica, a uma língua nova para que defina o sexo e o amor e a paixão, o abandono, a solidão, o papel de, o hábito de, a função de, o ódio e a justiça e a política e a traição, as drogas e os vícios, a noite e a desgraça, o fado como enfeite e a cidade como isto ou como aquilo ou como nós somos isto ou tu aquilo ou eu assim e quemcomoporquêondequando
desisto que se foda
é o que há a dizer depois de meses em silêncio e quando, de repente, uma página e meia dúzia de linhas o que sai é o que toda a gente sabe e diz, com mais ou menos maneirismos, mais ou menos raiva, mais ou menos sangue, mais ou menos talento, mais ou menos sorte, qualquer coisa que valha a pena existir, caraças, qualquer coisa que valha a pena ocupar espaço na vida das coisas ou para além da vida das coisas, qualquer coisa que não seja o mesmo rasgo juvenil encapotado, a mesma queixa repetida em várias notas, a mesma coisa sobre a mesma coisa sobre a mesma coisa sobre a mesma coisa sobre a mesma coisa sobre a mesma coisa sobre a mesma coisa sobre a mesma coisa -
e apercebi-me que existe um erro, que cometi um erro ao começar a escrever porque, agora, demasiado longo para apagar sem remorsos mas demasiado fraco para deixar viver sem remorsos -
viver com pecados é o que se diz querer mas viver com pecados não é mais do que viver com pecados.  


2 comentários:

  1. Nunca mais é muito tempo,nunca é demasiado forte.Por isso continua com a tua escrita,diz o que pensas,o que sentes,o que te faz sofrer e o que te deixa feliz.Fala dos amores e das desilusões,deste mundo louco e das asneiras cometidas por todos nós,mas fala e conta tudo nos teus poemas e textos porque tu sabes como o fazer e tudo é tão bom.

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