quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

#12


Devias encolher-te no sofá com uma manta a cobrir-te as pernas desde os joelhos e devias ir murmurando ou sorrindo enquanto lias o décimo-nono tomo da "enciclopédia" de Plínio (o Velho), olhando de relance a tua outra-metade sentada num cadeirão, entretida entre uma porcaria qualquer acerca das estruturas poéticas no novo século e uma comichão insistente no joelho, até que ela percebesse que murmuravas ou sorrias e te perguntasse o que se passava e tu pudesses descrever em pormenor tudo aquilo que achavas ser a tua melhor contribuição para a imparável evolução da cultura e da literacia.
Devias olhar a tua agenda, um caderno velho comprado numa papelaria de bairro como é de esperar de uma pessoa desprendida das plasticidades quotidianas, e reconfirmar encontros e acções de divulgação científica em auditórios mal conseguidos e cafés pouco frequentados, uma tarde com os patos na Gulbenkian e um ensaio sobre fenomenologia ou os Cantos de Ezra Pound - esquecendo políticas e fascismos e apoios a regimes maníacos e homicidas e emissões de rádio sustentando guerras e sangue e extermínio porque isso não é contigo, porque arte é arte e literatura, literatura, e porque não é território para lutas mesquinhas - ou olhando a relva e a água e ficando confortável com a sensação de plenitude e contemplação, aquecendo-te as pernas dos joelhos para cima. 
Devias acender a televisão apenas para ficares desiludido com a mesma e passar o resto do dia a recolher enormíssimos artigos e enormíssimos nomes de enormíssimas personalidades da enormíssima História cultural europeia, olhando de soslaio para a tua cara-metade, entretida com a dureza prática de planos a serem estruturados, custos e retorno a bem da intelectualização da nação, e suspirares com saudades do tempo em que a vias sem roupa e entusiasmada - e não uma sombra asmática no quarto às escuras - mas sem cederes à facilidade do sexo e da carne.
Devias sentir-te realizado com um pequeno passeio até ao Príncipe Real e um café cheio com pouco açúcar, com a leitura demorada de uma revista especializada numa área de estudo que dominas com relativa destreza de raciocínio e capacidade de argumentação, sustentada com notas de rodapé e citações improváveis.
Devias encolher-te no sofá e colocares Schubert na aparelhagem enquanto, olhando pela janela, pasmas com a falta de alma que as pessoas têm, a falta de sensibilidade, a falta de algum refinamento: pessoas que se dizem artistas e, no entanto, não se sentem embaraçadas por usarem linguagem obscena; pretensos poetas que pouco lêem os Grandes e se apropriam do pouco espaço que existe para aqueles que bem conheces e sabes como deveriam ser publicados e lidos; jovens que se alinham com a comédia norte-americana, sempre fácil e sem conteúdo, com a música norte-americana, sempre comercial e barulhenta, ignorando as jóias espalhadas pelo resto do globo (Itália, França, Grécia, África às vezes) - tudo isto se passando e acontecendo quotidianamente e tu, relaxado no sofá com o Sófocles contra as coxas, abanando a cabeça e sorrindo vagamente, a puxar pelo cinismo como quem se esforça para que o ar lhe saia do estômago, enquanto a tua outra-pessoa procura os cigarros desinteressadamente, não se preocupando com o cabelo não lavado há quatro dias porque não é pessoa, como tu, de se afligir com as frígidas frivolidades da fida. 


2 comentários:

  1. Um quadro perfeito de algumas (muitas) pessoas (talvez eu mesma) que se julgam a si próprios e aos outros sem verem nada

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  2. O pior nisso tudo é serem chatas e aborrecidas - como ir ao médico.

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