sexta-feira, 15 de junho de 2012

#21


Por que se fazem colecções?

* * *

O nome (imaginar registos antigos, catalogação soviética sem piedade de nós, pecadores) e somente pequenos retratos com os cantos rasgados, queimados, algumas poucas peças de roupa a serem quase fotografias e meia mão de tentativas e ensaios, saltos a medo até coisas mais altas, mais largas, mais longas, onde a memória mais perdurasse - cinquenta anos que fossem até que as mãos me confundissem com duas dúzias de dedos desarticulados - me são oferecidos, em vez da certeza de um espaço, uma fenda por onde olhar e farejar um pouco de ar solto, pormenores de um quadro geral confuso: fico, assim, a saber que João Silveira, pastor evangélico, arquitecto, farmacêutico, homem de empresas várias, vendedor de peças para automóveis, dois livros publicados e outros tantos às escondidas, músico e actor e vareador de cidades pequenas e solarentas, velho, careca, míope, a preto&branco, óculos escuros, hip hop e gel no cabelo, habitante de Macau a Lisboa, Minas Gerais, Suíça, o que faz nos tempos livres é coisa pouco sabida assim como outros locais onde possa ter habitado, causa de discussões e citações, tem dezenas de apelidos pouco convincentes, fico, portanto, a saber que, como se calculava, João Silveira não é mais ou não mais é que, apesar de marcas deixadas nos vidros e tampos de mesa, uma obra de ficção de contornos e aproximações que, num espelho e apesar de persistentes, se mantêm vagas e sem destino definido.