quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

#15


 P.

Está sol, é importante que esteja sol, e sente-se o cheiro da terra a ser queimada devagar, a erva e as árvores como brasas, sente-se o cheiro do sol contra o ar, é importante que esteja sol para que os prédios, o cimento e os vidros brilhem mais, quase magoando: uma luz impertinente, arrogante. E que o sino da igreja toque terrivelmente alto e que isso nos faça rir, é importante que isso nos provoque gargalhadas porque se não nos rirmos disso, o que mais fazer com tanta coisa absurda? E é necessário que a vida toda nos custe como um peso nas pernas, como roupa apertada, do avesso, para que aquilo que possamos dizer tenha alguma casa onde se abrigar, mesmo que não tenha.
Acima de tudo, é importante que esteja sol para que tudo isto seja quando pouca barba na cara, quando camisas sobre camisas e longos casacos verdes, quando café sobre cadernos e palavras sobre pombos  e mulheres e autocarros e comboios e salas húmidas e cadeiras e seiva sobre tampos de plástico e poeira e  sangue e pedras escuras e deus e não deus e a cidade e a morte e a vontade - acima de tudo, a vontade: é importante que esteja sol porque, acima de tudo, a vontade.


sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

#14



(as mãos são as cordas, as mãos são o metal a oxidar devagar, a criar farpas contra os dedos, as mãos são o frio a cristalizar-se em poucas notas e ecos e as mãos são uma explosão estelar - ruído poeira rochas deserto quente - enrolando a pele do peito, abrindo-o e largando-o à deriva)




(as mãos são ele à procura de si mesmo na água, as mãos são a água gelada sobre o corpo, a imersão no mar, as mãos são a ponta das palavras que nunca será capaz de articular.)


sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

#13



e ficar fora de pé de cada vez que se pretende um passo. 


quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

#12


Devias encolher-te no sofá com uma manta a cobrir-te as pernas desde os joelhos e devias ir murmurando ou sorrindo enquanto lias o décimo-nono tomo da "enciclopédia" de Plínio (o Velho), olhando de relance a tua outra-metade sentada num cadeirão, entretida entre uma porcaria qualquer acerca das estruturas poéticas no novo século e uma comichão insistente no joelho, até que ela percebesse que murmuravas ou sorrias e te perguntasse o que se passava e tu pudesses descrever em pormenor tudo aquilo que achavas ser a tua melhor contribuição para a imparável evolução da cultura e da literacia.
Devias olhar a tua agenda, um caderno velho comprado numa papelaria de bairro como é de esperar de uma pessoa desprendida das plasticidades quotidianas, e reconfirmar encontros e acções de divulgação científica em auditórios mal conseguidos e cafés pouco frequentados, uma tarde com os patos na Gulbenkian e um ensaio sobre fenomenologia ou os Cantos de Ezra Pound - esquecendo políticas e fascismos e apoios a regimes maníacos e homicidas e emissões de rádio sustentando guerras e sangue e extermínio porque isso não é contigo, porque arte é arte e literatura, literatura, e porque não é território para lutas mesquinhas - ou olhando a relva e a água e ficando confortável com a sensação de plenitude e contemplação, aquecendo-te as pernas dos joelhos para cima. 
Devias acender a televisão apenas para ficares desiludido com a mesma e passar o resto do dia a recolher enormíssimos artigos e enormíssimos nomes de enormíssimas personalidades da enormíssima História cultural europeia, olhando de soslaio para a tua cara-metade, entretida com a dureza prática de planos a serem estruturados, custos e retorno a bem da intelectualização da nação, e suspirares com saudades do tempo em que a vias sem roupa e entusiasmada - e não uma sombra asmática no quarto às escuras - mas sem cederes à facilidade do sexo e da carne.
Devias sentir-te realizado com um pequeno passeio até ao Príncipe Real e um café cheio com pouco açúcar, com a leitura demorada de uma revista especializada numa área de estudo que dominas com relativa destreza de raciocínio e capacidade de argumentação, sustentada com notas de rodapé e citações improváveis.
Devias encolher-te no sofá e colocares Schubert na aparelhagem enquanto, olhando pela janela, pasmas com a falta de alma que as pessoas têm, a falta de sensibilidade, a falta de algum refinamento: pessoas que se dizem artistas e, no entanto, não se sentem embaraçadas por usarem linguagem obscena; pretensos poetas que pouco lêem os Grandes e se apropriam do pouco espaço que existe para aqueles que bem conheces e sabes como deveriam ser publicados e lidos; jovens que se alinham com a comédia norte-americana, sempre fácil e sem conteúdo, com a música norte-americana, sempre comercial e barulhenta, ignorando as jóias espalhadas pelo resto do globo (Itália, França, Grécia, África às vezes) - tudo isto se passando e acontecendo quotidianamente e tu, relaxado no sofá com o Sófocles contra as coxas, abanando a cabeça e sorrindo vagamente, a puxar pelo cinismo como quem se esforça para que o ar lhe saia do estômago, enquanto a tua outra-pessoa procura os cigarros desinteressadamente, não se preocupando com o cabelo não lavado há quatro dias porque não é pessoa, como tu, de se afligir com as frígidas frivolidades da fida.