sexta-feira, 27 de maio de 2011

quarta-feira, 25 de maio de 2011

#3

Ter de partilhar o espaço e conversa com pessoas que não conseguem abrir totalmente os olhos como se continuamente ensonadas. Ter em atenção o tom de voz e a postura, evitar os braços descontraídos ou comentários igualmente pendendo ao longo do corpo ou dentro dos bolsos. Ter de fingir rir mas não em demasia que se sabe que um riso demasiadamente prolongado é indício de nenhum riso. Ter de pensar em praia e esplanadas e livros e mulheres despidas de maneira a que exista algum brilho nos olhos indicando que ainda não morremos ou secámos. Fingir interesse em curiosidades triviais ou longas tiradas - e lentas, sempre lentas - acerca da qualidade da comida ou charutos ou licores ou vinhos ou a organização e planeamento territorial de Santarém em 1952. Não bocejar, coçar, espreguiçar, erguer os braços acima do peito. Não praguejar. Manter o olhar o mais próximo possível do olhar dos cães à espera de um biscoito. Aceitar os biscoitos e dar ao rabo. Elogiar sem intenção. Assegurar que em nenhum momento existiram problemas ou exigências absurdas. Aceitar conselhos e opiniões sem responder. Ficar sentado, rebolar e ir buscar os chinelos ou o jornal ou uma cadeira ou um copo de água sempre que pedido. Dar a entender que estamos no nosso habitat, que gostamos do meio, das intrigas, do passado que não compreendemos porque somos demasiado novos e nos faltam anos de vida e experiência. Aceitar e colar na testa expressões como "o jovem", "alternativo". Não ladrar. Não morder a trela. Agradecer sempre. Pedir autógrafos. Nunca cair no erro de permitir a sensação de que estaríamos a envergonhar os nossos pais caso nos vissem numa esterqueira semelhante.



terça-feira, 24 de maio de 2011

#2

ultimamente, as palavras falham-me em chegar ao som e os meus olhos acumulam o que passa




horas vãos de escada calçadas telefonemas copos gelados os bolsos cheios de pequenos objectos inesperados - um clip papéis com mensagens indecifráveis algum dinheiro um fio negro uma chapa plástica um molho de chaves para várias portas que são várias vidas que somos nós a existirmos mais num sítio e menos noutro mas existindo, ainda assim -, ou ainda lábios madeixas de cabelo malas abertas sem nenhum segredo o rio de relance um jardim de relance um reflexo de relance para assegurarmos que ali se passou uma ferida na mão uma dor devagar num ombro sempre persistindo uma fotografia a ganhar pó com alguém por trás dessa memória e com ela outras coisas amontoadas peças de roupa pelo chão cama cadeira uma tesoura minúscula um pássaro morto paredes semi-desfeitas um punho contra o estuque uma frase a escorrer para o passeio um corpo despido ou um carro de algum modo como um molho de chaves vielas e atalhos sem ninguém um casal abraçado e um casal em silêncio ou um elevador a fechar-se devagar um telefone a tocar uma caneta sem tampa folhas de papel ao longo de uma rua prostitutas derrubadas contra uma parede com um ar cansado carros lentos sob os semáforos ou uma praceta escura e um jardim já com poucas flores um prédio de três andares pessoas deitadas em bancos de jardim uma chaminé de tijolo acima de todos os telhados e gatos devagar empurrando portas




mas nada ou quase nada soa como verdadeiramente real, desoriento-me com frequência e sonho implacavelmente com uma estrutura metálica a pressionar-me a cara, desmoronando-se sem som.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

#1

as pessoas agarradas a jornais as pessoas com maus fígados a beberem café e um copo de água as pessoas caladas as pessoas mal dispostas de manhã a gritarem com o mundo as pessoas a olharem para a janela as pessoas como fungos as pessoas que foram as pessoas que nunca as pessoas no escuro a ouvirem outras pessoas dormir as pessoas um golpe de sorte um jogo da moeda as pessoas ruído as pessoas braços e lábios numa varanda as pessoas desaparecidas as pessoas rasgões na retina na memória na língua as pessoas sem alento as pessoas de braços no ar e fogo nos passeios da avenida as pessoas bêbedas porque outra coisa por vezes insuficiente as pessoas um cigarro porque às vezes a demora as pessoas com pressa as pessoas como um puzzle as pessoas sorridentes as pessoas com medo sempre com medo as pessoas passado e as pessoas futuro as pessoas como um projecto a ser realizado sem intenção com intenção por acidente por acaso solarento as pessoas em fotografias ou num novelo de rostos irreconhecíveis porque as pessoas por vezes inenarráveis por vezes um lugar sem janela por vezes terrivelmente difíceis de amar.